A esclerose múltipla é uma doença neurológica crônica que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Ela é caracterizada pela inflamação e desgaste da mielina, uma substância que reveste as fibras nervosas…
A esclerose múltipla é uma doença neurológica crônica que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Ela é caracterizada pela inflamação e desgaste da mielina, uma substância que reveste as fibras nervosas, levando a uma série de sintomas debilitantes.
Afeta indivíduos no início da vida adulta e tem um enorme impacto funcional, financeiro e na qualidade de vida de quem apresenta a doença. Os custos com o seu tratamento são consideráveis e aumentam constantemente com o aumento da incapacidade que a doença possa causar ao longo da vida do paciente.
Estima-se que a Esclerose Múltipla acometa cerca de 40 mil pessoas no Brasil e é a segunda causa de incapacidade neurológica permanente abaixo de 50 anos de idade no país.
Embora não exista uma cura definitiva para a esclerose múltipla, a neurocirurgia funcional emergiu como uma abordagem promissora no tratamento e no alívio dos sintomas dessa condição, principalmente sobre as sequelas motoras e sobre os sintomas dolorosos, que podem acometer o paciente durante as crises da doença.
O Que é a Esclerose Múltipla Progressiva?
A esclerose múltipla progressiva é uma forma crônica e degenerativa da esclerose múltipla (EM). Ela se diferencia da forma remitente-recorrente da EM por sua progressão constante, com os sintomas piorando gradualmente ao longo do tempo. A principal característica da EM progressiva é a perda de mielina, uma substância que isola e protege as fibras nervosas do sistema nervoso central. À medida que a mielina é destruída, as comunicações entre o cérebro e o resto do corpo são comprometidas, levando a uma ampla gama de sintomas, como fraqueza muscular, dificuldade de coordenação, fadiga, problemas de visão e dificuldades cognitivas.
Embora não se saiba a causa exata da EM progressiva, acredita-se que fatores genéticos e ambientais desempenhem um papel importante em seu desenvolvimento. Os tratamentos convencionais, como terapias imunossupressoras e modificadoras da doença, são frequentemente usados para retardar a progressão da doença e aliviar os sintomas, mas não oferecem uma cura definitiva.
Apesar do avanço número de possibilidades de tratamentos modificadores da doença nas últimas duas décadas para o subtipo remitente-recorrente, existe uma escassez de tratamentos eficazes para as formas progressivas da doença, juntamente, com a falta de um efeito importante dos tratamentos, nos casos de recaídas da doença.
O Papel da Neurocirurgia Funcional na Esclerose Múltipla Progressiva
A neurocirurgia funcional é um campo da neurocirurgia que se concentra em técnicas cirúrgicas para modificar a função de um determinado sintoma, quando este se torna limitante nas atividades diárias do paciente. Ela se tornou uma opção terapêutica promissora para pacientes com EM progressiva que não respondem adequadamente às terapias convencionais. Embora a neurocirurgia não possa curar a doença, ela pode ajudar a melhorar a qualidade de vida dos pacientes, aliviando os sintomas e reduzindo as limitações da progressão da doença.
Dos sintomas mais desafiadores encontrados em paciente com EM progressiva, destacam-se a dor e a espasticidade. Após um surto que ocasione uma lesão neurológica, tanto na medula ou como no encéfalo, o paciente necessita conviver com as sequelas motoras ocasionadas pela nova lesão. Algumas técnicas neurocirúrgicas podem atenuar a gravidade destes sintomas.
Dor crônica na Esclerose Múltipla
Quando analisamos a dor crônica na EM estima-se que 29–86% dos pacientes apresentem este sintoma.
Vários subtipos dor podem ocorrer na EM :
- dor neuropática;
- dor nas costas;
- espasmos tônicos dolorosos;
- sinal de Lhermitte : o ato de fletir a cabeça sobre o peito desencadeia uma sensação semelhante a um choque elétrico que pode se espalhar para os braços e as pernas;
- neuralgia do trigêmeo: dor tipo choque na face, que pode ser de um lado apenas ou nas duas porções da face;
Pacientes que são acometidos por dor crônica são mais velhos, tem maior incapacidade motora e apresentam uma maior duração da doença. Geralmente, não existe uma diferenciação sobre o gênero quando falamos em dor crônica na EM, com exceção da neuralgia do trigêmeo e dor visceral, que são mais comuns em pacientes com EM do sexo feminino.
Fisiopatologia da dor crônica na Esclerose Múltipla
A dor crônica na EM esta diretamente relacionada a progressão da doença e pode ser de origem central por desinibição do sistema corticoespinhal ou ativação crônica de aferentes nociceptivos ou ser secundária a complicações da doença, como espasticidade e contratura.
Outro fator a ser considerado como causador da dor crônica em pacientes com EM são os tratamentos farmacológicos, como esteroides, pois seu uso a longo prazo pode levar à osteoporose e, consequentemente, fraturas patológicas dolorosas. O uso de beta interferon que pode exacerbar crises de enxaqueca.
A espasticidade na Esclerose Múltipla
A espasticidade é a causa mais comum de dor em pacientes com EM, além de ser o sintoma doloroso mais comumente relatado, visto que é observado em 90% dos pacientes. A distribuição da espasticidade depende da localização da lesão no sistema nervoso central (SNC) que o paciente apresente em seus exames de imagem, mas as queixas mais frequentes de espasticidade em pacientes com EM ocorrem na parte inferior das costas e nos membros inferiores.
A dor relacionada à espasticidade é principalmente de origem nociceptiva e inclui aumento do tônus, espasmos (contrações involuntárias, descontroladas e repetitivas dos músculos esqueléticos) e/ou clônus. Caso estes sintomas não sejam tratados precocemente quando instalados, podem ocasionar contraturas musculares e rigidez do movimento do membro acometido.
A espasticidade pode também estar relacionada a dor muscular mecânica, pois mover um músculo contraído causa dano estrutural, liberando marcadores inflamatórios e, assim, provocando dor. Além disso, outras complicações dolorosas relacionadas à espasticidade podem levar a subluxações e luxações articulares, principalmente na articulação do quadril e úlceras cutâneas de pressão.
Técnicas de Neurocirurgia Funcional para a Esclerose Múltipla Progressiva
A neuromodulação tem sido estudada ao longo dos anos para aliviar sintomas de dor de causa neuropática. Na EM temos a associação de dor neuropática e espasticidade. A neuromodulação farmacológica mostra-se uma terapia promissora no controle destes sintomas. A infusão intratecal (no líquido espinhal) contínua de baclofeno proporciona efeito antiespasticidade mais eficaz comparação com o uso do baclofeno oral em pacientes com EM. Para que a infusão intratecal ocorra de maneira continua necessitamos de um dispositivo chamado: bomba de infusão de fármacos. De maneira precisa e assertiva este dispositivo leva a quantidade de medicamentos, no caso o baclofeno, diretamente no líquido espinhal, por um cateter interno conectado a um reservatório também interno.
Não é possível fazer punções lombares repetidas para o uso baclofeno intratecal, no líquido espinhal, pois a duração do efeito do medicamento gira em torno de 8-16 horas no nosso organismo. Por isso, utilizamos a punção lombar apenas para testar o seu efeito para simular o seu efeito antes do implante da bomba de infusão de fármacos.
Leia mais sobre o teste de baclofeno no link abaixo:
https://dragianakuhn.com.br/teste-de-baclofeno-intratecal/
Implante de Bomba de Infusão Intratecal- Baclofeno:
Nesta abordagem, uma bomba de infusão é implantada cirurgicamente, abaixo da pele, na porção abdominal do paciente, ela e conectada a um cateter que fica localizado na porção intraespinhal. A bomba fornece medicamentos diretamente ao espaço intratecal, onde o líquido cefalorraquidiano circula, permitindo a administração de medicamentos antiespásticos ou analgésicos de maneira mais eficaz do que a administração oral, com melhor efeitos colaterais. A bomba permite ajuste de doses conforme a necessidade diária de cada paciente.
Ela funciona como um reservatório interno de medicamentos, funciona pela energia de gerador interno, integrado a bomba.
Leia mais cobre a técnica no link abaixo:
https://dragianakuhn.com.br/bomba-de-infusao-de-farmacos/
Uma pesquisa do Comitê de Pesquisa da América do Norte sobre Esclerose Múltipla (NARCOMS) publicada em 2004, mostrou que 84% dos pacientes relataram algum sintoma de espasticidade, porém apenas 1% tinha uma bomba de infusão de fármacos implantada. Levando em consideração que cerca de 13% dos pacientes com EM foram estimados como candidatos potenciais para implante da bomba de infusão intratecal, esta modalidade de tratamento eficaz está sendo subutilizada na EM.
O processo de seleção de pacientes com EM para o implante da bomba de infusão de fármacos segue os mesmos princípios gerais de outras doenças que causam espasticidade difusa grave. Geralmente estes pacientes apresentam espasmos tônicos intratáveis , resposta inadequada ou baixa tolerabilidade aos agentes orais, resposta fugaz ao uso de toxina botulínica.
Resultados e Benefícios da Neurocirurgia Funcional: Bomba de Infusão de Baclofeno Intratecal
Embora a neurocirurgia funcional não seja uma cura definitiva para a EM progressiva, ela tem mostrado benefícios significativos para muitos pacientes. Os principais resultados e benefícios incluem:
- Alívio da Dor e Espasticidade: A implantação de bombas de infusão intratecal pode reduzir a dor crônica e a espasticidade, o que pode ser debilitante para pacientes com EM progressiva.
- Melhoria da Qualidade de Vida: Os benefícios combinados das técnicas de neurocirurgia funcional resultam em uma melhoria significativa na qualidade de vida dos pacientes, permitindo que eles desfrutem de uma vida mais plena e ativa.
Foi demonstrado que o implante da bomba de infusão de fármacos, com uso de baclofeno intratecal, proporciona alívio do desconforto e da dor relacionados à espasticidade, maior facilidade de cuidado, melhor postura e melhor capacidade de transferência em pacientes com EM.
Além disso, comparando pacientes com EM que apresentam o dispositivo implantado, em relação aos que utilizam apenas medicamentos via oral para controle dos sintomas de espasticidade; os pacientes com bomba de infusão de baclofeno intratecal apenas graduações menores de espasticidade, maiores índices de satisfação com o tratamento, melhora na qualidade do sono, sem acarretar piora da função respiratória.
A melhora da dor também será melhora da depressão associada. Apesar de não ser o desfecho principal estudos também demostram melhora da função urinaria por diminuir a espasticidade da bexiga.
A terapia parece ser segura durante a gravidez na população jovem de pacientes com EM. Além disso, pacientes com bomba de infusão de fármacos podem realizar estudos de ressonância magnética sequenciais e repetidas sem prejuízo do dispositivo e do paciente.
A ressonância magnética fará com que a bomba pare momentaneamente de funcionar, como se ela estivesse pausada, mas a recuperação espontânea geralmente ocorre. E importante interrogatório da bomba com a equipe técnica responsável pelo dispositivo, após qualquer ressonância magnética que o paciente realize, para garantir retomada do funcionamento normal e descartar parada prolongada do motor
Considerações Importantes:
- Avaliação Adequada: A seleção de pacientes e a avaliação adequada de sua aptidão para a neurocirurgia funcional são essenciais. Cada paciente é único, e o benefício potencial da cirurgia deve ser cuidadosamente ponderado em relação aos riscos envolvidos. No caso do uso do baclofeno intratecal, o paciente deve ter realizado um teste por punção lombar com o uso do baclofeno com resposta satisfatória na espasticidade e na dor para o implante da bomba.
- Necessidade de Acompanhamento: Os pacientes submetidos à neurocirurgia funcional requerem acompanhamento regular para monitorar a eficácia do tratamento e ajustar as configurações dos dispositivos e necessitam dos refis de baclofeno, ou seja, a troca do medicamento. Como o baclofeno, dura aproximadamente 4 meses dentro no reservatório da bomba, as trocas de medicamentos são feitas com frequência, pelo menos, 3- 4 x por ano. Além disso, o reservatório da bomba de infusão não funciona se estiver vazio, pois o seu dispositivo eletrônico precisa do conteúdo interno preenchido de medicamento para funcionar. Portanto, os pacientes devem estar preparados para compromissos regulares de acompanhamento médico para garantir o funcionamento adequado dos dispositivos e monitorar qualquer possível complicação. A falta abrupta do baclofeno intratecal pode resultar em síndrome de abstinência do medicamento, caracterizada por piora da espasticidade, espasmos tônicos, convulsões e coceira.
- Riscos e Complicações: Como qualquer procedimento cirúrgico, a neurocirurgia funcional apresenta riscos e complicações, como infecção, hemorragia e reações adversas aos dispositivos implantados (mau funcionamento do cateter). É essencial que os pacientes estejam cientes dessas considerações críticas, bem como de seus direitos e opções de tratamento. A decisão de prosseguir com a neurocirurgia funcional deve ser tomada em consulta com uma equipe médica experiente, que pode fornecer orientação individualizada com base nas necessidades e circunstâncias de cada paciente. A EM está associada a um maior prevalência de convulsões do que a população em geral, portanto, o aumento do risco de convulsão é uma possível preocupação. Uma revisão retrospectiva com pacientes com EM tratados com bomba de infusão de baclofeno encontrou uma maior incidência de convulsões em comparação com um grupo de comparação que não utilizavam o dispositivo 7 % versus1 %, embora as convulsões no grupo de paciente com uso da bomba de infusão foram frequentemente associadas com outros gatilhos potenciais.
Perspectivas Futuras da Neurocirurgia Funcional na EM Progressiva
O campo da neurocirurgia funcional está em constante evolução, e as pesquisas continuam a explorar novas técnicas e abordagens para o tratamento da EM progressiva. Alguns desenvolvimentos promissores incluem:
- Implante de eletrodo profundo- DBS( Deep Brain Stimulation): alguns alvos principalmente para o controle dos tremores relacionados com a EM estão sendo estudados. O DBS pode ser uma técnica benéfica para reduzir o tremor da EM, embora a exploração de novos alvos é necessária para preencher a lacuna entre a redução do tremor e melhoria funcional significativa.
- TMS: Estimulação Magnética Transcraniana: Método não invasivo de neuromodulação. Pesquisas sugerem que a TMS pode alterar a atividade neuronal por vários mecanismos diferentes. Vários estudos descobriram que a estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMTr) pode reduzir a espasticidade em pacientes com esclerose múltipla.
- SCS (Spinal Cord Stimulation)- Estimulação medular: tratamento cirúrgico que consiste no implate de uma eletrodo na região medular, dispositivo emite eletronicamente estimulação que altera a informação dolorosa cerebral. Este tratamento ter um efeito terapêutico positivo efeito na dor neuropática refratária e na disfunção da bexiga em pacientes com esclerose múltipla. Seus efeitos na função motora são discutíveis e requerem mais pesquisas. O efeito sobre a espasticidade é promissor, e a literatura recente acredita que mais pesquisas sobre este tema são necessárias para entender melhor quais níveis medulares devem ser estimulados e quais são as melhores programações para este perfil de pacientes.
- Terapias Gênicas: A terapia genética é uma área em crescimento na qual os genes defeituosos podem ser corrigidos ou substituídos, visando tratar a causa subjacente da EM progressiva.
Considerações Finais
A esclerose múltipla progressiva é uma doença neurológica desafiadora, que afeta a qualidade de vida de muitos pacientes. Embora a neurocirurgia funcional não ofereça uma cura definitiva, ela desempenha um papel importante no tratamento da EM progressiva, aliviando sintomas, melhorando a qualidade de vida dos pacientes. No entanto, a decisão de optar pela neurocirurgia funcional deve ser cuidadosamente ponderada, levando em consideração os riscos e benefícios.
É essencial que os pacientes com EM progressiva trabalhem em estreita colaboração com suas equipes médicas para explorar todas as opções de tratamento disponíveis e desenvolver um plano de tratamento personalizado. Além disso, a pesquisa contínua e os avanços na neurocirurgia funcional oferecem esperança para um futuro melhor para aqueles que vivem com essa condição debilitante. A busca pela compreensão mais profunda da EM progressiva e o desenvolvimento de terapias mais eficazes continuam a ser prioridades na busca por soluções para essa doença desafiadora.
Fontes sobre o tema:
Abboud H, Hill E, Siddiqui J, Serra A, Walter B. Neuromodulation in multiple sclerosis. Mult Scler. 2017 Nov;23(13):1663-1676. doi: 10.1177/1352458517736150. PMID: 29115915.
Aboud T, Schuster NM. Pain Management in Multiple Sclerosis: a Review of Available Treatment Options. Curr Treat Options Neurol. 2019 Nov 27;21(12):62. doi: 10.1007/s11940-019-0601-2. PMID: 31773455.
Coelho, V. B. C. P.; Salvador, V. L.; Rodrigues, F. G.; Wingester, E. L. C. Análise dos aspectos epidemiológicos da Esclerose Múltipla no Brasil durante o período de 2012 a 2022. Brazilian Journal of Health Review, [S. l.], v. 6, n. 6, p. 27513–27527, 2023. DOI: 10.34119/bjhrv6n6-078.
Yamout BI, Alroughani R. Multiple Sclerosis. Semin Neurol. 2018 Apr;38(2):212-225. doi: 10.1055/s-0038-1649502. Epub 2018 May 23. PMID: 29791948.