Interação da Cannabis Medicinal com Medicamentos

A cannabis medicinal tem se tornado um tema de grande interesse na medicina moderna, especialmente no tratamento de diversas condições de saúde. Na neurologia, sua utilização é indicada em casos de epilepsia refratária, no controle de sintomas dolorosos em pessoas com dor neuropática, além de impactar positivamente no controle de sintomas psiquiátricos como na ansiedade, depressão. Este artigo visa explorar a interação da cannabis medicinal com medicamentos abordando seus efeitos, benefícios e possíveis riscos.

 

  Cannabis Medicinal: entendendo a composição dos produtos

A cannabis medicinal é utilizada, em associação a outros tratamentos medicamentosos, para tratar uma variedade de condições, incluindo dores crônicas, espasmos musculares, epilepsia, e sintomas de dor neuropática e espasticidade na esclerose múltipla.

Seus componentes ativos, ou seja, os seu fitocanabidoides como o THC (tetra-hidrocanabinol), CBD (canabidiol), CBG (canabigerol), e o CBN (Canabinol) têm propriedades analgésicas, anti-inflamatórias, em maior ou em menor proporção, que são altamente valorizadas na medicina.

No Brasil, utilizamos produtos em forma de óleos, gomas ou cápsulas, de uso oral, que variam de concentração, e de apresentação a depender da marca e da indicação médica.

O THC é conhecido por seus efeitos psicoativos, que podem proporcionar alívio da dor e indução de relaxamento, sendo útil no manejo de condições que envolvem dor intensa, melhora do sono. Por outro lado, o CBD não possui efeitos psicoativos e é amplamente utilizado por suas propriedades anticonvulsivantes e ansiolíticas.

Além  do THC e do CBD, tem se estudado produtos com concentrações diferentes de outros dois fitocanabinoides:

  • o CBN: que auxilia o controle do sono;
  • o CBG: que apresenta possíveis efeitos analgésico e anti-inflamatórios sem efeitos psicoativos.

Além disso, a cannabis medicinal tem mostrado efeitos benéficos na melhora da qualidade de vida de pacientes que sofrem de doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer, ao ajudar na gestão de sintomas como dor crônica, sintomas ansiosos e melhora da qualidade do sono.

 

Associando a Cannabis Medicinal aos Medicamentos de uso contínuo

 

Na prática médica, principalmente para quem trata condições crônicas como Dor Crônica, Epilepsia, Doença de Parkinson, frequentemente nos deparamos com pessoas que utilizam diversas classes de medicamentos.  E, com o envelhecimento e a longevidade, também nos deparamos com a polifarmácia e o uso de medicamentos para os tratamentos de diversas condições não neurológicas como as doenças metabólicas e cardiovasculares.

Por isso, é essencial que o médico prescritor de cannabis medicinal saiba todos os medicamentos de uso contínuo do seu paciente e conheça os possíveis efeitos adversos na associação entre o uso da cannabis medicinal e os medicamentos de uso contínuo rotineiro.

Por isso, iremos abordar os medicamentos mais frequentemente associados a interações medicamentosas com a cannabis medicinal de forma simplificada, baseado nas evidências científicas atuais.

 

Interações Medicamentosas em associação ao uso de Canabis Medicinal

 

O uso generalizado de produtos contendo CBD e Δ9-THC sem um controle médico adequado e de forma indiscriminada pode acarretar riscos de interações farmacocinéticas com medicamentos farmacêuticos, o que pode resultar em toxicidade ou eficácia alteradas, principalmente em associação a medicamentos também metabolizados pelo citocromo P450 CYP.

O THC é metabolizado pelas enzimas CYP2C9 e CYP3A4, enquanto o CBD é metabolizado pelas enzimas CYP3A4 e CYP2C19. Até o momento, um total de 20 classes de medicamentos foram identificadas como tendo interações com a cannabis medicinal.

Será destacado em tópicos abaixo as interações conhecidas e mais relevantes com produtos de Cannabis Medicinal .

 

Interação da Cannabis Medicinal com a Varfarina

 

A varfarina é um anticoagulante frequentemente utilizado na cardiologia e para prevenção e complicações tromboembólicas como a trombose venosa profunda, o tromboembolismo pulmonar, dentre outras condições médicas. Seu ajuste medicamentoso é realizado pela conforme o resultado do exame laboratorial de INR, do tempo de protrombina. Estudos demostram que o uso de produtos com canabidiol podem estar associados ao aumento do INR, ou seja tornando a varfarina mais potente.

Esse aumento nos níveis de INR é explicado por um mecanismo farmacocinético (inibição das enzimas metabólicas da varfarina, principalmente pelo CBD).

Desta forma, sempre que estivermos utilizando produtos a base de cannabis medicinal em pacientes em uso de varfarina, devemos verificar a possibilidade de um ajuste medicamentoso caso o INR se altere.

 

Interação da Cannabis Medicinal com Benzodiazepínicos

 

Existem evidências significativas interação entre cannabis medicinal e benzodiazepínicos, particularmente com o Clobazam que é um fármaco anticrise utilizado na epilepsia.

Foi demonstrado que o CBD inibe a atividade do CYP219 e do CYP3A4, que estão envolvidos no metabolismo do Clobazam. Como resultado, o CBD tem um impacto mais significativo nos níveis de clobazam, potencializando os seus efeitos. No entanto, os efeitos colaterais diminuem gradualmente com a redução da dose de clobazam. Existe inclusive um risco aumentado de sedação quando utilizados em associação.

Além disso, o estudo também descobriu que o uso isolado de CBD levou a melhorias no estado de alerta e nas interações verbais no tratamento de convulsões, em comparação com o uso combinado de CBD e Clobazam.

 

Interação da Cannabis Medicinal com Anticonvulsivantes

 

A maioria das interações medicamentosas da cannabis medicinal está associada a fármacos utilizados para controle de doenças relacionadas ao Sistema Nervoso Central, principalmente com os anticonvulsivantes.

A interação entre cannabis medicinal e anticonvulsivantes é particularmente relevante para pacientes em tratamento para Epilepsia e na Dor Crônica. O CBD, em particular, tem demonstrado eficácia no controle de crises convulsivas, sendo utilizado em vários países como tratamento complementar de alguns subtipos de epilepsia refratária.

Em geral, a interação entre antiepilépticos e CBD aumenta os níveis de medicamentos antiepilépticos, particularmente para eslicarbazepina e brivaracetam.

Além disso, a coadministração de CBD com estiripentol e valproato pode elevar as enzimas hepáticas (AST/ALT). Curiosamente, a elevação das enzimas hepáticas foi observada mesmo quando os níveis de valproato não foram afetados. Algumas possíveis explicações para essa interação incluem o perfil hepatotóxico do valproato e do CBD, que resulta em uma interação sinérgica entre o valproato e o CBD.

Dado o risco aumentado de danos hepáticos, deve se considerar a redução das doses de valproato ou estiripentol e CBD quando os exames hepáticos estiverem significativamente elevados, e, se os níveis não retornarem aos valores basais, o CBD ou o valproato podem ter que ser descontinuados devido ao seu perfil de hepatotoxicidade.

Embora não tenham sido relatados efeitos adversos graves, recomenda-se monitorar seus níveis plasmáticos dos medicamentos antiepiléticos quando forem coadministrados com CBD.

Estudos indicam que o CBD pode reduzir a frequência e a gravidade das crises, o que pode permitir uma redução na dosagem de anticonvulsivantes tradicionais e minimizar seus efeitos colaterais. No entanto, é crucial monitorar as possíveis interações farmacológicas, pois o CBD pode influenciar o metabolismo de alguns anticonvulsivantes, alterando seus níveis no organismo.

Interação da Cannabis Medicinal com Antidepressivos

 

Os inibidores da recaptação da serotonina são antidepressivos mais comumente utilizados pela população geral. Dentre eles, destacam-se possíveis interações da canabis medicinal com o citalopram e o escitalopram. O metabolismo do citalopram e do escitalopram ocorre principalmente por meio das isoenzimas CYP2C19 e CYP3A4, ambas inibidas pelo CBD.

No entanto, é crucial reconhecer que o uso de cannabis pode resultar em sedação e comprometimento cognitivo, semelhantes aos efeitos colaterais associados a esses antidepressivos, por potencializar os seus efeitos. São necessários mais estudos e pesquisas sobre as interações entre o CBD e o citalopram ou o escitalopram para uma avaliação destas possíveis considerações.

 

Interação da Cannabis Medicinal com antibióticos e antifúngicos

 

Rifampicina e canabis medicinal: Estudos demonstram que a rifampicina (um indutor do CYP3A4) diminuiu as concentrações de THC e CBD. Ou seja, é provável que os pacientes que a utilizem necessitem um aumento da dose de CBD.

Cetoconazol e canabis medicinal: Por outro lado, o cetoconazol (um inibidor do CYP3A4) aumenta as concentrações de THC e CBD. Devido ao aumento do risco de efeitos adversos, como sonolência e tontura, uma diminuição de dose deve ser considerada quando o CBD é coadministrado com o cetoconazol.

 

Interação da Cannabis Medicinal com Opióides

 

A interação entre a cannabis medicinal e analgésicos opioides é um campo de estudo emergente e promissor. Estudos sugerem que a combinação de THC e CBD pode potencializar os efeitos dos opioides, permitindo uma redução na dosagem desses medicamentos e, consequentemente, diminuindo o risco de dependência e efeitos colaterais.

Curiosamente, sabe-se que o uso concomitante de cannabis com morfina ou oxicodona aumenta o efeito analgésico dos opioides sem alterar seus parâmetros cinéticos. Isso provavelmente ocorre porque a cannabis leva ao atraso da motilidade gastrointestinal dos opióides. Infelizmente, esta afirmação continua sendo uma presunção teórica devido às evidências limitadas disponíveis para validação.

Mas o concomitante de cannabis medicinal pode ajudar a melhora do controle da dor crônica sem aumentar significativamente o risco de efeitos adversos graves. No entanto, é importante considerar que essa combinação deve ser monitorada de perto por profissionais de saúde, pois pode haver variações na resposta dos pacientes.

Além disso, a cannabis pode ajudar a combater a náusea e o vômito, que são efeitos colaterais comuns do uso de opioides, contribuindo para uma melhor adesão ao tratamento e conforto do paciente.

 

Interação da Cannabis Medicinal com Antirretrovirais

 

Os antirretrovirais indinavir e nelfinavir, comumente usados ​​no tratamento de infecções por HIV, também apresentaram potencial interação com a cannabis medicinal. Existe uma possível correlação de efeitos inibitórios dos canabinóides no sistema enzimático do citocromo P450, particularmente nas subfamílias CYP3A e CPP2C em estudos in vitro, porém este tema necessita mais estudos para elucidar o real efeito dessas associações no uso prático do dia-a-dia.

 

Considerações sobre o uso de Cannabis Medicinal em Idosos

 

A polifarmácia tornou-se um fenômeno cada vez mais comum na população idosa e esta prática está associada a uma maior probabilidade de interações medicamentosas. Desta forma, ao associar a cannabis medicinal ao tratamento de idosos deve-se considerar riscos e benefícios e ter cuidado com efeitos colaterais mais frequentes em associação a muitos fármacos em associado, existe um risco de hipotensão, tonturas e sonolência a depender da dose e das associações de fármacos de uso contínuo.

Por isso, a cannabis medicinal não deve ser considerada como uma substância isenta de riscos. Devemos sempre avaliar cautelosamente a sua indicação nesta população e conciliar doses e titulações dos demais medicamentos de uso contínuo e possíveis efeitos colaterais.

 

Riscos e Considerações do uso da Cannabis Medicinal

 

Apesar dos potenciais benefícios, a interação da cannabis medicinal com medicamentos de uso contínuo não é isenta de riscos. A variabilidade na resposta dos pacientes e as possíveis interações medicamentosas requerem uma abordagem cautelosa e bem monitorada.

Um dos principais riscos é a possibilidade de interação adversa entre a cannabis e outros medicamentos, que pode resultar em efeitos colaterais indesejados ou diminuição da eficácia terapêutica.

É essencial que os médicos prescritores sejam bem-informados sobre as propriedades da cannabis medicinal e suas interações potenciais antes da sua prescrição. E orientem adequadamente seus pacientes da necessidade de um monitoramento médico durante o seu uso e a necessidade de possíveis ajustes terapêuticos durante o seguimento.

 

Considerações Finais

 

A interação da cannabis medicinal com medicamentos anticonvulsivantes e nos fármacos utilizados na dor crônica pode atuar de forma adjuvante no controle dessas doenças. Os benefícios potenciais, de sinergismo entre algumas interações medicamentosas pode inclusive predispor, ao longo do tempo, em uma chance potencial de redução de dose. Mas existe uma necessidade de uma compreensão cuidadosa dos riscos e benéficos e de interações medicamentosas.

O avanço das pesquisas nesse domínio é crucial para desenvolver protocolos de tratamento seguros e eficazes, permitindo que a cannabis medicinal seja integrada de forma harmoniosa e benéfica na prática neurológica.  A colaboração entre pesquisadores, clínicos e pacientes é fundamental para explorar plenamente as possibilidades e mitigar os riscos associados ao uso da cannabis medicinal.

 

Artigos de referência sobre o assunto

 

Bansal S, Zamarripa CA, Spindle TR, Weerts EM, Thummel KE, Vandrey R, Paine MF, Unadkat JD. Evaluation of Cytochrome P450-Mediated Cannabinoid-Drug Interactions in Healthy Adult Participants. Clin Pharmacol Ther. 2023 Sep;114(3):693-703. doi: 10.1002/cpt.2973. Epub 2023 Jun 30. PMID: 37313955; PMCID: PMC11059946.

Ho JJY, Goh C, Leong CSA, Ng KY, Bakhtiar A. Evaluation of potential drug-drug interactions with medical cannabis. Clin Transl Sci. 2024 May;17(5):e13812. doi: 10.1111/cts.13812. PMID: 38720531; PMCID: PMC11079547.

Lopera V, Rodríguez A, Amariles P. Clinical Relevance of Drug Interactions with Cannabis: A Systematic Review. J Clin Med. 2022 Feb 22;11(5):1154. doi: 10.3390/jcm11051154. PMID: 35268245; PMCID: PMC8911401.

Picture of Dra. Giana Kühn
Dra. Giana Kühn
A Dra. Giana Flávia Kühn é uma neurocirurgiã especializada em neurocirurgia funcional e tratamento de dores crônicas. Dra. Giana se dedica a oferecer cuidados de alta qualidade utilizando técnicas avançadas e inovadoras. Com um compromisso constante com a atualização e o aprendizado, ela visa proporcionar alívio duradouro e melhorar a qualidade de vida de seus pacientes. Atualmente, atende em São Paulo, onde oferece um atendimento humanizado e personalizado.
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A Dra. Giana Flávia Kühn é uma neurocirurgiã especializada em neurocirurgia funcional e tratamento de dores crônicas. Dra. Giana se dedica a oferecer cuidados de alta qualidade utilizando técnicas avançadas e inovadoras. Com um compromisso constante com a atualização e o aprendizado, ela visa proporcionar alívio duradouro e melhorar a qualidade de vida de seus pacientes. Atualmente, atende em São Paulo, onde oferece um atendimento humanizado e personalizado.

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