A cannabis medicinal, também conhecida como maconha medicinal, tem ganhado destaque há algumas décadas como uma alternativa terapêutica para uma variedade de condições médicas, incluindo convulsões refratárias.
A convulsão refratária é um sintoma que pode ocorrer na epilepsia. A epilepsia é uma das condições crônicas neurológicas mais comuns entre adultos e crianças. Afeta aproximadamente cerca de 65 milhões de pessoas no mundo. O controle medicamentoso na grande maioria dos casos é realizado com o uso de um anticonvulsivante apenas, ou seja, com o uso da monoterapia. Porém cerca de 30 % dos pacientes com epilepsia irão necessitar diversos medicamentos anticonvulsivantes para o seu controle, e muitos deles nem assim conseguirão o controle adequado das convulsões, são quando as crises se tornam refratárias.
O que é uma convulsão refratária?
Convulsões refratárias são aquelas que não respondem adequadamente aos tratamentos convencionais, representando um desafio significativo para pacientes e médicos.
As Convulsões Refratárias: Desafios e Implicações Clínicas
Convulsões refratárias representam um desafio significativo para pacientes e profissionais de saúde. Essas convulsões são caracterizadas pela falta de resposta adequada aos tratamentos convencionais, como medicamentos antiepilépticos de primeira linha.
Pessoas com convulsões resistentes ao tratamento correm um risco muito maior de sofrer danos cerebrais persistentes causados diretamente pelas convulsões ou indiretamente devido às consequências secundárias das crises epilépticas, com efeitos adversos na qualidade de vida.
Para quem apresenta convulsões refratárias no dia a dia, isso não apenas impacta na qualidade de vida, mas também pode resultar em complicações médicas graves, incluindo lesões físicas, déficits cognitivos e emocionais, e até mesmo risco de morte.
O manejo de convulsões refratárias requer uma abordagem multifacetada e individualizada. Os profissionais de saúde muitas vezes precisam recorrer a uma variedade de estratégias, incluindo ajustes na medicação antiepiléptica, intervenções
dietéticas, cirurgia e terapias não convencionais, como a cannabis medicinal. No entanto, mesmo com essas abordagens, alguns pacientes podem continuar a experimentar convulsões recorrentes, destacando a necessidade de opções terapêuticas adicionais e mais eficazes.
Muitas pessoas com epilepsia de difícil controle acabam fazendo o uso de uma polifarmácia, ou seja, utilizam diversas classes de medicações antiepilépticas como uma tentativa de diminuição das crises e acabam também aumentando os seus efeitos colaterais, incluindo sedação, sonolência e impactos comportamentais e cognitivos.
Além dos desafios clínicos, as convulsões refratárias também apresentam implicações emocionais e sociais significativas para os pacientes e suas famílias. O constante medo de convulsões imprevisíveis pode levar a altos níveis de estresse e ansiedade, afetando negativamente o bem-estar emocional e a qualidade de vida. Além disso, o impacto das convulsões refratárias na capacidade de trabalho, educação e participação social pode levar a sentimentos de isolamento e depressão.
Tipos de epilepsia de difícil controle: Encefalopatias epilépticas e de desenvolvimento
Pacientes com encefalopatias epilépticas e de desenvolvimento (EEDs) frequentemente apresentam convulsões resistentes ao tratamento. EEDs são epilepsias graves de início precoce, caracterizadas por convulsões refratárias, atraso ou regressão no desenvolvimento e outras comorbidades, frequentemente associadas à atividade epiléptica contínua e mau prognóstico. Alguns exemplos de EEDs incluem a:
- Síndrome de Lennox-Gastaut (LGS)
- Síndrome de Dravet (DS)
- Esclerose Tuberosa (TSC)
- Síndrome de quinase 5 dependente de ciclina: CDKL5
- Síndrome de Dup15q
- Síndrome de Aicardi.
É importante ressaltar que pessoas com EEDs apresentam uma alta carga de convulsões tônico-clônicas generalizadas e apresentam um risco aumentado de morte súbita inesperada na epilepsia (SUDEP). Desta forma, a necessidade de buscar alternativas para o controle das crises é essencial para quem é acometido por alguma destas epilepsias.
Uso da cannabis medicinal no controle de crises convulsivas
Historicamente, há relatos que os sumérios já utilizavam a planta para o seu uso neurológico há mais 3800 anos atrás. Na história da medicina moderna já existem relatos dos seus efeitos terapêuticos na epilepsia desde o século XIX, e nos anos 40 e 60.
Cabe ressaltar a importância de um pesquisador brasileiro, chamado Elisaldo Carlini, que iniciou nos anos 70, estudos sobre o canabidiol (CBD) um fitocanabinóide no controle da epilepsia em modelos animais e, posteriormente, em seres humanos na epilepsia, sugerindo as primeiras evidências científicas sobre o potencial terapêutico do CBD em tratamento desta patologia.
O Papel da Cannabis Medicinal no Controle de Convulsões Refratárias o que temos de evidência até o momento
Para compreender plenamente o papel da cannabis medicinal no controle de convulsões refratárias, é fundamental explorar mais detalhadamente seus componentes ativos e os mecanismos pelos quais eles podem influenciar a atividade neuronal. O CBD, um dos principais canabinóides encontrados na cannabis, tem sido objeto de grande interesse devido às suas propriedades anticonvulsivantes.
Estudos têm demonstrado que o CBD pode modular a excitabilidade neuronal por meio de uma variedade de mecanismos, incluindo a regulação dos receptores de neurotransmissores e a modulação do fluxo de íons nos canais iônicos.
Além disso, o CBD parece exercer efeitos anti-inflamatórios e antioxidantes, que podem desempenhar um papel importante na redução do estresse e na inflamação associada às convulsões. Estudos em modelos animais de epilepsia têm mostrado que o CBD pode reduzir a frequência e a gravidade das convulsões, proporcionando assim uma base científica sólida para sua investigação como tratamento potencial para convulsões refratárias em seres humanos.
No entanto, é importante notar que o CBD não é o único componente da cannabis que pode influenciar a atividade neuronal. O THC, outro canabinóide presente na planta, também demonstrou ter propriedades anticonvulsivantes em estudos pré-clínicos. No entanto, o THC está associado a efeitos psicoativos, o que limita a dose utilizadas principalmente em algumas populações, especialmente em crianças e adolescentes.
Estudos clínicos em humanos têm fornecido evidências cada vez mais robustas sobres a eficácia da cannabis medicinal, especialmente na forma de extratos de CBD, no controle de convulsões refratárias.
Em particular, pessoas com síndrome de Dravet e síndrome de Lennox-Gastaut, que historicamente têm sido difíceis de tratar com terapias convencionais, têm demonstrado responder positivamente ao tratamento com cannabis medicinal em diversos estudos. Reduções significativas na frequência de convulsões com diminuição de pelo menos 40 % das crises ou mais, melhora na qualidade de vida e tolerabilidade geral do tratamento foram relatadas em vários estudos clínicos com pouso efeitos colaterais.
No entanto, é importante reconhecer que os resultados dos estudos clínicos podem variar e que nem todos os pacientes respondem igualmente ao tratamento com cannabis medicinal. Além disso, são necessárias mais pesquisas para determinar a dosagem ideal, até o momento as pesquisas, já realizadas utilizaram doses entre 5-50mg/kg por dia de CBD.
Além disso, a duração do tratamento e os potenciais efeitos adversos em longo prazo associados ao uso de cannabis medicinal no manejo de convulsões refratárias também devem ser abordados em trabalhos científicos futuros.
Uma abordagem individualizada, envolvendo uma avaliação cuidadosa do paciente e uma colaboração estreita entre médicos e especialistas em cannabis medicinal, é essencial para garantir resultados positivos e seguros.
Como funciona a absorção do CBD no nosso organismo?
A biodisponibilidade e absorção do CBD são altamente dependentes da via de administração, com concentrações máximas atingidas dentro de 10 minutos após a administração intranasal, dentro de 2 horas após a administração oral e após mais de 15 horas quando administrado através de um gel transdérmico.
O uso do CDB associados a outros anticonvulsivantes
Um ponto que vem sendo discutido e, portanto, merece destaque diz respeito às possíveis interações do CBD com outros anticonvulsivantes por meio da chamada politerapia, tão comum em pacientes com epilepsias refratárias.
É importante que em futuros estudos consideramos a farmacodinâmica e a farmacocinética do CBD associado a outros anticonvulsivantes e vice e versa, para que assim conseguiremos avaliar suas interações medicamentosas.
Uma dessas possibilidades documentadas é a interação do CBD com o benzodiazepínico clobazam. Ambos são metabolizados pela via do citocromo P450 (CYP), e o CBD pode estar potencializar os efeitos do clobazam ao inibir essa via metabólica. Da mesma forma, o clobazam também pode potenciar os efeitos antiepilépticos do CBD, inibindo a sua via de degradação. Esta possibilidade levantou uma questão sobre a eficácia do CBD no tratamento da epilepsia, e leva o questionamento quais seriam os efeitos do CBD no tratamento da epilepsia ou quais seriam os seus efeitos associados ao clobazam concomitante, seriam os mesmos? Embora esta resposta ainda não seja clara, o CBD na Europa foi aprovado apenas como tratamento adjuvante do clobazam.
No entanto, um estudo realizado com pacientes com síndrome de Lennox-Gastaut e síndrome de Dravet que receberam CBD na ausência de clobazam, apontam fortemente para o fato de que este fitocanabinóide exerce seus efeitos terapêuticos independentemente da sua interação com o referido benzodiazeínico.
Cannabis Medicinal: Óleos isolados ou óleos full ou broad sprectrum
Os óleos de cannabis apresentam diversas concentrações e formulações. Mas o que se sabe dos benefícios de óleos com outros fitocanadinóides em sua composição,os chamados broad sprectrum ou full sprectrum, e quais são as suas possíveis vantagens em relação aos óleos isolados aqueles que possuem apenas CBD na sua composição?
A possibilidade do efeito Entourage: o que se sabe?
O efeito entourage é um termo sugerido referindo-se a uma situação em que um grupo de compostos endógenos semelhantes ao nosso sistema endocanabinoide natural atuem em conjunto, potencializando os efeitos mediados pelos receptores canabinóides. Seria um sinergismo através das substâncias, dos diferentes compostos presentes na cannabis podem potencializar os seus efeitos.
Assim, as evidências indicam que muitos dos efeitos terapêuticos observados através do uso de fitocanabinóides ocorrem, na verdade, muito mais pela interação complexa e pouco compreendida de todos os compostos presentes na planta (principalmente THC e CBD) do que pela ação isolada de um único composto o CDB.
Os pacientes com epilepsia tratados com extratos ricos em CBD também necessitaram de doses menores (6 mg/kg/dia) do que os pacientes que usaram apenas CBD (25,3 mg/kg/dia), ou seja, um efeito quatro vezes maior por parte do extrato não purificado.
Ainda assim, no mesmo estudo, também foi possível notar que os pacientes tratados com extratos ricos em CBD tiveram menos efeitos colaterais, tanto leves (33%) quanto graves (7%) quando comparados com aqueles que receberam CBD purificado (76% leves e 26% graves).
Considerações Éticas e legais
É essencial que os médicos e pacientes considerem cuidadosamente os riscos e benefícios da cannabis medicinal no manejo de convulsões refratárias.
Além disso, é importante que os pacientes sejam educados sobre os potenciais efeitos colaterais da cannabis medicinal e recebam orientação adequada sobre seu uso seguro e eficaz. Hoje esta terapia é aceita e recomendada pela comunidade científica em pacientes com formas graves de epilepsia.
Perspectivas Futuras e Desafios
À medida que a pesquisa sobre cannabis medicinal continua a avançar, é provável que surjam novas perspectivas e desafios. Desafios persistentes incluem o estigma social associado ao uso da cannabis, a falta de regulamentação consistente e a necessidade de educação contínua de profissionais de saúde e do público em geral. No entanto, com uma abordagem baseada em evidências e colaboração entre pesquisadores, médicos e formuladores de políticas, a cannabis medicinal tem o potencial de se tornar uma ferramenta valiosa no manejo de convulsões refratárias e outras condições médicas complexas.
Considerações Finais
A cannabis medicinal representa uma área emocionante e em evolução no campo da medicina, especialmente no manejo de convulsões refratárias. Embora haja evidências promissoras de sua eficácia, é importante reconhecer as considerações éticas, legais e de segurança associadas ao seu uso. À medida que a pesquisa continua a avançar, é fundamental que médicos, pacientes e formuladores de políticas trabalhem juntos para garantir o acesso seguro e eficaz à cannabis medicinal, maximizando seus benefícios terapêuticos para aqueles que mais precisam.
Fontes sobre o assunto:
Reddy DS. Therapeutic and clinical foundations of cannabidiol therapy for difficult-to-treat seizures in children and adults with refractory epilepsies. Exp Neurol. 2023 Jan;359:114237. doi: 10.1016/j.expneurol.2022.114237. Epub 2022 Oct 4. PMID: 36206806.
Pamplona FA, Da Silva LR, Coan AC. Potential clinical benefits of CBD-rich cannabis extracts over purified CBD in treatment-resistant epilepsy: observational data meta-analysis. Front Neurol. (2018) 9:759. 10.3389/fneur.2018.00759